Sei, mon amour, que a culpa de nossa desgraça
repousa em meus ombros. Sou o único culpado e pagarei caro por isso. Não
fugirei, nem implorarei por minha vida. Estou enfurnado entre quatro paredes,
preso para sempre, como naquela música do Paul McCartney de que eu gosto tanto,
e ao som da qual, muitas vezes, fizemos amor, mas, ao contrário da “Band on the run”, não sairei daqui, não
há esperança de fuga.
De mim, de nós, só
restará esta carta que algum dia, creio eu, quedará em suas mãos. Isso, é
claro, se ela não for extraviada, destruída, deturpada. Minha Paloma, como
sabe, palavras podem se desmanchar no ar, ou nas gavetas, as traças existem
para isso.
Não pensei que um
inocente cigarro causaria a nossa desgraça. Não foi por mal, muito menos por
bem, que eu o acendi. Estávamos absortos no “je vais, je vais et je viens entre tes reins”. Além de que
escutávamos “Je t’aime... Moi non plus”,
de Serge Gainsbourg, por isso a citação, minha pequerrucha ... Tudo parecia
perfeito! Quando dei por mim, nossa cama estava em chamas e não era de paixão.
Nosso inferno particular começou nessa hora.
Notícias correm rápido,
Ma petite colombe de la discorde, mal
saímos do nosso quarto enfumaçado e somos capa do jornal de hoje. Nem vimos que
fomos fotografados. Você nua e eu como nasci. Tarjas pretas tampam nossos sexos
e os teus apetitosos e tesos bicos dos seios.
Hoje de manhã, seu
marido me ligou. Falou que iria me destruir e que eu ofendera um cabra macho.
Retruquei que ele estava mais para bovino, do que caprino, esquecera dos
chifres? O que talvez tenha aumentado a sua ira. Ele descreveu minuciosamente o
que faria com os meus órgãos genitais quando colocasse as mãos em mim. Estou
tomando previdências para que isso não ocorra.
Reforcei as trancas da
porta, na verdade, troquei a porta e a casa inteira. A nota fiscal do esconderijo
à prova de bomba nuclear avisava que era impenetrável, nem a radiação, nem o
seu marido vão pôr em risco a minha vida. Entretanto, sei que um marido nervoso
e enganado, consumido pelo ódio, irá colocar todo este aço abaixo. Essa é a
minha maior preocupação.
Sei que minha casa será
tomada, mas será aos poucos. Primeiro a maçaneta, depois a porta. Ele tomará os
ladrilhos com seus passos apressados e cada pó recôndito de minha residência. De
nada adiantarão minhas súplicas e as paredes de metal. Não terei como fugir,
estou acuado.
O modo como ele vai me
tirar a vida me atordoa. Já sinto o cano frio da arma em minha nuca, ou será que
ele me matará a facadas, contando, minuciosamente, o número de perfurações?
Como Nelson Rodrigues avisou, Toda nudez
será castigada. Basta estar pelado com a mulher dos outros e você verá.
Escuto alguém mexer na
porta. Sinto minha respiração diminuir, mas ele desiste e se vai. Viverei aqui,
trancafiado para sempre, até que um dia a morte me arraste para o seu fosso
silencioso e escuro. Queria te ter em meus braços por mais uma vez, te dar
carinho, mas a tranca da porta só abre após cem anos. Estou preso aqui. Se o
seu marido não me matar antes, quando eu estiver velho, olharei tua foto, minha
Paloma, na hora de minha morte, sabendo que você estará velha e enrugada e não
será nem a sombra do que já foi. Meu olho deixará derramar a última lágrima e
me entregarei vencido, pensar isso me alegra, me faz esquecer que meu fim será
outro, mais trágico. Meu amor, adeus.
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