quinta-feira, 2 de maio de 2013

Minha pombinha da discórdia


Sei, mon amour, que a culpa de nossa desgraça repousa em meus ombros. Sou o único culpado e pagarei caro por isso. Não fugirei, nem implorarei por minha vida. Estou enfurnado entre quatro paredes, preso para sempre, como naquela música do Paul McCartney de que eu gosto tanto, e ao som da qual, muitas vezes, fizemos amor, mas, ao contrário da “Band on the run”, não sairei daqui, não há esperança de fuga.
De mim, de nós, só restará esta carta que algum dia, creio eu, quedará em suas mãos. Isso, é claro, se ela não for extraviada, destruída, deturpada. Minha Paloma, como sabe, palavras podem se desmanchar no ar, ou nas gavetas, as traças existem para isso.
Não pensei que um inocente cigarro causaria a nossa desgraça. Não foi por mal, muito menos por bem, que eu o acendi. Estávamos absortos no “je vais, je vais et je viens entre tes reins”. Além de que escutávamos “Je t’aime... Moi non plus”, de Serge Gainsbourg, por isso a citação, minha pequerrucha ... Tudo parecia perfeito! Quando dei por mim, nossa cama estava em chamas e não era de paixão. Nosso inferno particular começou nessa hora.
Notícias correm rápido, Ma petite colombe de la discorde, mal saímos do nosso quarto enfumaçado e somos capa do jornal de hoje. Nem vimos que fomos fotografados. Você nua e eu como nasci. Tarjas pretas tampam nossos sexos e os teus apetitosos e tesos bicos dos seios.
Hoje de manhã, seu marido me ligou. Falou que iria me destruir e que eu ofendera um cabra macho. Retruquei que ele estava mais para bovino, do que caprino, esquecera dos chifres? O que talvez tenha aumentado a sua ira. Ele descreveu minuciosamente o que faria com os meus órgãos genitais quando colocasse as mãos em mim. Estou tomando previdências para que isso não ocorra.
Reforcei as trancas da porta, na verdade, troquei a porta e a casa inteira. A nota fiscal do esconderijo à prova de bomba nuclear avisava que era impenetrável, nem a radiação, nem o seu marido vão pôr em risco a minha vida. Entretanto, sei que um marido nervoso e enganado, consumido pelo ódio, irá colocar todo este aço abaixo. Essa é a minha maior preocupação.
Sei que minha casa será tomada, mas será aos poucos. Primeiro a maçaneta, depois a porta. Ele tomará os ladrilhos com seus passos apressados e cada pó recôndito de minha residência. De nada adiantarão minhas súplicas e as paredes de metal. Não terei como fugir, estou acuado.
O modo como ele vai me tirar a vida me atordoa. Já sinto o cano frio da arma em minha nuca, ou será que ele me matará a facadas, contando, minuciosamente, o número de perfurações? Como Nelson Rodrigues avisou, Toda nudez será castigada. Basta estar pelado com a mulher dos outros e você verá.
Escuto alguém mexer na porta. Sinto minha respiração diminuir, mas ele desiste e se vai. Viverei aqui, trancafiado para sempre, até que um dia a morte me arraste para o seu fosso silencioso e escuro. Queria te ter em meus braços por mais uma vez, te dar carinho, mas a tranca da porta só abre após cem anos. Estou preso aqui. Se o seu marido não me matar antes, quando eu estiver velho, olharei tua foto, minha Paloma, na hora de minha morte, sabendo que você estará velha e enrugada e não será nem a sombra do que já foi. Meu olho deixará derramar a última lágrima e me entregarei vencido, pensar isso me alegra, me faz esquecer que meu fim será outro, mais trágico. Meu amor, adeus.

domingo, 17 de março de 2013

Ideias no seu lugar


Souberam que ele estaria lá, naquele banheiro público de shopping. Com seus cabelos alisados, e com a sua infeliz boca da qual só sai merda, no sentido literal da palavra. Depois de tudo que ele ousara falar em público, não poderia passar impune.
– Mayday, mayday! 171 falando!
– Na escuta, 171, aqui é o Ponta Grossa.
– O digníssimo se encontra no shopping, caminha com passos apressados, veste terno, e está com os cabelos empapados de laquê, ele fez a chapinha hoje! Está se dirigindo para o banheiro.
– Copiado, 171. Solta pra geral. Sinal verde para a operação “Ideias no seu lugar”. Cuidado pra não causar alarde. Ele pode se evadir do local.
– Ok, Ponta Grossa! Copiado e operando.
A notícia rolou solta nos walk talks dos celulares. Quando o digníssimo entrou no banheiro, quatro armários tamanho família o encurralaram em um canto.
– Seu fanfarrão de uma figa...
– O que-que que-e é?
Ponta Grossa, que tinha dois metros e meio só de músculo, pegou o digníssimo pelo colarinho e o suspendeu como se fosse um boneco desnutrido de Olinda.
– Como é? Tu não vai falar as mesmas coisas que disse lá não? Ou será que vou ter que te obrigar.
– Fa-falar o que-que?
– Cuidado, Ponta Grossa, o digníssimo vai te molhar...
– Como?
– O digníssimo acaba de mijar nas calças.
Ponta Grossa solta o digníssimo como um saco de batatas. Dá-lhe dois tabefes na cabeça.
– Só porque é político e presidente da Comissão dos Direitos Humanos, tu não pode sair falando assim da gente, seu mijão. Maldição patriarcal... parece que é doido.
– Vo-vocês têm que entender...
– Tem que entender uma ova. Ponta Grossa, vamos dar umas clareadas nas ideias dele.
O grupo não precisou ouvir mais nada. Pegaram as pernas do digníssimo e saíram puxando-o em direção ao vaso sanitário. Ele cravou as unhas no chão do banheiro e, por onde passava, deixava as marcas de suas unhas. Implorava pelo amor de Deus que o deixassem ir embora. Não contaria nada, mas de nada adiantou as suas súplicas.
Enquanto um vigiava a porta, dois seguravam suas pernas, mergulhando-o no vaso sanitário, e outro acionava o botão de descarga. Desentopem o vaso com sucesso e se evadem do local.
Sozinho no banheiro, o digníssimo, aos prantos, passa as mãos pelos seus cabelos, inconsolável. Balança a cabeça, não acreditando no que acontecera, era o maior desastre de sua vida.
– Ai, meu Deus, estragou a minha chapinha! 

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Doze de Dezembro


Sento na cama e vejo TV. Acho que o mundo acabou faz tempo, desde o dia em que abaixei meu traseiro na frente disso, a TV levou o meu tempo, a minha vida... Agora por este aparelho desgraçado fico sabendo do fim! Serei dizimado como os dinossauros. Apenas um cometa pra levar tudo em apenas um segundo. Não bastava viver à espera de um desastre por causa da bomba nuclear, da de nêutron, ainda tinha que vir um cometa. Olha, cometa, não se faz de besta e entra pra greta, não sou anacoreta, a meditar preces, a suplicar salvações...
O que farei quando vir o fim despertar pela janela? Será que amei o suficiente e quando o fim chegar rirei sarcasticamente, ácido? Não! Acho que não...
Pego o cigarro olhando o horizonte, sorrio lembrando de uma velha propaganda de cigarros que passava nas madrugadas de antigamente. Tenho o mesmo olhar de vencedor, igual ao do garoto propaganda daquela marca de cigarro, que tragava a fumaça distraidamente olhando o horizonte como se o mundo fosse seu. Ao contrário dele dou uma tragada longa e duradoura para me despedir da vida e do mundo, nada mais é meu! Agora não importa se morrerei de velhice ou de câncer.
Fumo um maço de cigarros inteiro e abro um litro de cachaça, sorvo o líquido pelo gargalo, a água-ardente desce pela goela, queimando-a. Tenho que partir degustando os melhores aromas e paladares.
Olho pela janela e sinto vertigem, desta altura seria fatal; penso, mas desisto. Embriagado, ficarei dormente e anestesiado, não sentirei o meu fim. Eu não o verei, como também não vi a vida passar com seus passos ligeiros e os pés cheios de calos.
Eu que sou sujeito às sujeiras e calamidades contemporâneas, que me achava tão limpo, serei uma sujeira a emporcalhar as patinhas das baratas. Sinto minha consciência distante e pesada. Nocauteado pelo álcool caio pesadamente em minha cama. Restará o silêncio e a nulidade da vida.
Acordo suado e rançoso, a minha pele está curtida pelo álcool. O mundo acabou? Estou em outra vida? Como, se a outra é igual a esta? Os mesmos barulhos, os mesmos vizinhos. No 412 a mesma transa matutina. É, o mundo não acabou, o cometa não caiu, a flor não sumiu... A única tragédia que aconteceu neste dia treze de dezembro de dois mil e doze foi mijar na borda do vaso sanitário, mas como não sou casado, a tragédia vira apenas mais uma vez entre outras tantas. Acabo de urinar e me dirijo para sala, encho um copo de cachaça, jogo um gole no chão e penso:
– É, não tem jeito! Você vai ter que nos aturar por um bom tempo, ainda...